sábado, 9 de junho de 2007

O que é o Burlesco?

Como alguns sabem, estou a tentar enquanto promotor de espectáculos apresentar aos públicos em Portugal uma nova linguagem artística, que vem desde o século XIX e que nos anos 90 que tem assistido a um criativo revivalismo. No entanto, ao contrário de tantas outras coisas em Portugal, ainda nem sequer começou e já é objecto de incompreensão e falta de capacidade de reflexão sobre uma linguagem que é estranha. Mais complicado se apresenta quanto esta atitude surge de pessoas da minha geração e com responsabilidades na área da política cultural, demonstrando exactamente os mesmos preconceitos que tornaram o nosso país num verdadeiro fenómeno de lentidão em relação à mudança social.

O que é o Burlesco e o Vaudeville?

Ao contrário do que se pode pensar, o Burlesco não se trata de um grupo de strippers que se apresentam num palco, muito pelo contrário.
O Burlesco é um directo descendente da chamada Commedia dell'arte, uma forma de teatro de improviso que se realizava em Itália, muito popular entre os séculos XV e XVII. Eram pequenas companhias compostas no máximo por 10 elementos que viviam das contribuíções populares aquando das suas performances ao ar livre.Versavam temas convencionais da época como o ciúme, o adultério, os afectos e mesmo alguns peças de comédias romanas e gregas perdidas no tempo. Muitas dessas peças romanas e gregas tinham personagens que satirizavam escandalos locais, eventos da altura, gostos regionais, piadas variadas de caríz cultural, etc.. Ainda hoje conseguimos identificar muitas dessas personagens que se foram afirmando na Commedia dell'arte, como o Arlequim, a Columbina, o Brighella, entre outros. Ao longo dos séculos a Commedia dell'arte marcou de forma significativa muitas outras obras de arte, sendo a título de exemplo, as obras de Molièr, uma das operas de Richard Strauss, o uso de algumas personagens nos trabalhos de Prokofiev, ou mesmo mais recentemente em alguns momentos da carreira da banda rock Queen ou dos desenhos animados televisivos The Simpsons, que são uma cópia assumida de personagens da Commedia.
Sendo Commedia dell'arte uma das fontes principais de muitas das artes perfomativas modernas ( ballet, marionetas, stand-up comedy, sátira, pantomina, strip-tease, dança erótica, entre muitas outras) naturalmente ela acabou por ter expressão num país recente como os Estados Unidas da América. O Burlesco surge assim no século XIX nos chamados Music Hall dos EUA e do Canadá, sendo estes espaços um conceito inglês, onde em resultado da urbanização e da industrialização, se criou uma especie de teatro britânico de entretenimento popular composto essencialmente por música, comédia e performances especiais (muitas vindas do circo, como trapesistas, ventríloquos, comedores de fogo, marionetistas, entre muitos outros). Esses espaços surgiam como contraposição à ‘ordem dos teatros tradicionais’, sendo que nos ‘Music Hall’ se podia consumir alcool, estar em pé, sentarem-se em mesas, muito mais próximo da cultura popular da época e consequentemente menos elitista. Estes espaços foram muito populares entre 1850 e 1960 em Inglaterra, E.U.A. e Canadá. Após a IIª Guerra Mundial entram em declínio com a afirmação da televisão nas práticas culturais e com uma nova linguagem musical radicalmente diferente que surgia e encontra outros espaços para se afirmar: o rock’n’roll. No entanto, deixou um legado muito relevante na produção artística, desde a música ao teatro, sendo que o seu apogeu é considerado no período entre as duas Grande Guerras.
Ao Burlesco (que era essencialmente composto pela sátira, performances e espectáculo de adultos), nos E.U.A. e Canadá, junta-se uma linguagem especifica, mas mais alargada, o Vaudeville (termo que foi adulterado do francês, “voix de ville”, a voz da cidade), que era uma forma de arte que se afirmou essencialmente desde o inicio de 1800 até 1930 e foi buscar as suas origens aos espectáculos que se reealizavam nos saloons, freak shows e nos chamados Dime Museums (instituições criadas para o entretenimento e educação moral das classes pobres norte-americanas), bem como à literatura burlesca. O Vaudeville foi um das formas de arte mais populares nos E.U.A. nos fins do século XIX. Todos os dias nos já referidos Music Hall eram apresentados uma série de performances sem qualquer relação entre eles, desde músicos (clássicos e populares), dançarinas, comediantes, animais amestrados, mágicos, imitadores, acrobatas, pequenas peças de teatro e inclusivé a dada altura, pequenos filmes.
O Burlesco trata-se assim de uma rica forma de arte musical e cómica nos Estados Unidos da América que remonta aos anos de 1830/40 e que se foi redefinindo ao longo de décadas até essencialmente 1960. No seu inicio, no século XIX, o Burlesco teve um papel fundamental na mudança de costumes, principalmente na visão sexual da mulher. Pela primeira vez a mulher norte-americana podia mostrar o seu corpo, facto esse que iria marcar decisivamente toda a cultura popular associada ao género feminino, e posteriormente desenvolvida pelas chamadas Indústrias Culturais. Expressava igualmente o confronto entre a cultura aristocrata da época Victoriana e a nova cultura operária que surgia em massa. Assim, no século XIX o termo burlesco era ainda usado para um conjunto de espectáculos cómicos, que pretendia satirizar o modo de vida das elites socio-económicas dos E.U.A. e da Inglaterra. O seu sucesso junto das classes mais desfavorecidas e da classe média em muito deve a essa linguagem de crítica social em forma de comédia. A história mostra claramento isso quando olhamos para os enormes sucessos no século XIX das peças de burlesco produzidas e protagonizadas por actores da época como William Mitchell, John Brougham e Laura Keene.
O declínio do Vaudeville e do Burlesco inicia-se com a afirmação do cinema no inicio do século XX e com a utilização daqueles espaços populares usualmente utilizados por esses espectáculos, para a apresentação de películas cinematográficas. A competição com os preços baixos do cinema e o cariz claramente popular do mesmo deixavam pouca margem de manobra para uma expressão artística que se tinha afirmado no século anterior. A redução dos grandes circuitos que tinham sido construídos no século XIX para a apresentação destas novas expressões de arte popular contribuíram para uma lenta decadência dessas mesmas expressões artísticas. O seu fim acelarou-se no período pós IIª Guerra Mundial, com o surgimento da televisão, redefinindo por completo as práticas culturais dos ingleses, norte-americanos e canadianos.
O Vaudeville e o Burlesco acabaram por fazer a sua migração para outras plataformas de exposição pública, como a rádio e a televisão, sendo que muitos dos programas da televisão devem a este conceito o seu sucesso, como foi o caso nos E.U.A. do The Ed Sullivan Show.


Hoje assiste-se a um revivalismo do Burlesco e do Vaudeville, que se iniciou nos anos 90 com alguns grupos interessados em renovar e revitalizar esta expressão de arte, essencialmente em Nova York e em Los Angels. Essas iniciativas nos anos 90 de rivivalismo permitiram inspirar toda uma nova geração de performers nos E.U.A. e no Canadá, constituindo-se hoje como uma verdadeira expressão de cultural popular, à semelhança da sua origem. Hoje o novo Burlesco é composto por muitas artes perfomantivas, inter-disciplinares, incluíndo desde o striptease (de uma forma muito mais sensual e menos sexual que no seu inicio), adereços vistosos, humor negro, cabaret, magia, entre muitas outras expressões de arte perfomativa. Nova York, Los Angels e São Francisco são hoje das cidades que mais contributo estão a dar ao revivalismo deste conceito, sendo a primeira cidade aquela que mais contribuí para isso, com a sua vida nocturna e os seus equipamentos de entretenimento e culturais.
É neste contexto que surgem novas propostas artísticas, espectáculos e festivais de burlesco, como o Tease-O-Rama, New York Burlesque Festival, The Great Boston Burlesque Exposition, Lucent Dossier Vaudeville Cirque, Yard Dogs Road Show, Miss Exotic World Pageant, etc. Inclusivé, esta centenária linguagem artística que hoje se renova, encontra expressão mundial plataformas, como a utilização de todo o conceito do Burlesco no teledisco da banda norte-americana Panic! at The Disco, onde participaram os Lucent Dossier Vaudeville Cirque.

Autor: Ricardo S.

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