segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Pelo menos demonstra que o processo de estabelecimento de uma ideia dominante não se faz por um simples decreto ou um acto de autoritarismo imediato..

isto independentemente do juízo de valor que autor deste blog tem feito nestes posts...




Outubro (7)

Em Março de 1918, no único número da Gazeta dos Futuristas, Vladimir Maïakovski assinava, em conjunto com David Burliuk, um «Manifesto da Federação Volante dos Futuristas» endereçado aos «proletários da arte» mas também aos «das fábricas e das oficinas». Na «Carta Aberta aos Operários», que surgia na mesma publicação, o poeta convidava-os a «rasgarem com os dentes os pedaços da arte sã, jovem e rude» que ali lhes era oferecida. Nos primeiros tempos após a vitória de Outubro, a voz de Maïakovski representou o compromisso criador que parecia ser possível manter entre o vanguardismo exaltado dos futuristas e o modelo de sociedade socialista proposto pelos bolcheviques. A concepção futurista da arte, valorizadora da função didáctica em detrimento da função figurativa assegurada pela estética tradicional, parecia, nessa altura, poder adequar-se a um tempo de completa reformulação da realidade.

Foi pois com uma aparente naturalidade que Lunatcharski, Comissário do Povo para a Instrução, apelou à sua participação em importantes organismos culturais do Estado. No final de 1918, na revista A Arte da Comuna, afirmava-se taxativamente que «só a arte futurista é actualmente a arte do proletariado» e que «só nós, artistas do mundo novo, estamos em condições de transformar o mundo». Um «Decreto 1º sobre a democratização da arte», aparecido na Gazeta, declarava mesmo que esta deveria abandonar «palácios, galerias de arte, salões, bibliotecas, teatros», partindo sem complexos ao encontro da rua e do quotidiano, «inscrevendo-se nas paredes, nas paliçadas, nos tectos, nas ruas das nossas cidades e aldeias, (…) numa festa da arte para todos». Para a utopia estética proclamada pelos futuristas russos, cada artista deveria colocar-se ao dispor da actividade colectiva das massas, interferindo nela através da criação. A crença na possibilidade imediata de materializar a quimera através de uma aliança com o poder bolchevique foi então de tal ordem que a maioria deles aderiu colectivamente ao Partido.

A «festa da arte», porém, duraria pouco tempo. Os bolcheviques rapidamente começaram a distanciar-se das metáforas incendiárias e anárquicas desses intelectuais difíceis de moldar, retirando-lhes parte do apoio inicial e forçando-os a organizarem-se à parte. Uma Frente de Esquerda iria então procurar a sobrevivência e a afirmação do projecto comunista-futurista proclamando a morte da arte pela arte e a transformação do artista em «construtor», com a tarefa de «meter em forma» as necessidades práticas da sociedade. Saído neste contexto, o ensaio-manifesto «O Construtivismo», de 1922, inaugurará formalmente a afirmação de uma linha estética aplicada em intervir de forma directa no levantamento da nova sociedade. A produção de objectos gráficos (cartazes, livros, fotomontagens), a concepção de peças e de espaços destinados à vida corrente constituíram o meio privilegiado, devido à particularidade da sua dimensão eminentemente prática. A arquitectura e o urbanismo, permitindo ao artista moldar a sociedade do futuro através de uma manipulação efectiva do espaço da vida, mantiveram também, na altura, um lugar de destaque na actividade dos construtivistas.

Mas este tempo de intervenção das elites vanguardistas no processo de afirmação do novo Estado socialista começava a ter, sob as condições da ditadura do proletariado e da severa restrição das liberdades públicas, os dias contados. As primeiras tentativas de afirmação de uma cultura centrada numa lógica de aplicação do marxismo à actividade artística, não partiram, porém, do interior do Partido bolchevique, mas antes da actividade de um grupo autónomo, o Proletkult. Preocupados com o levantamento de uma «cultura de classe», capaz de revelar a ideologia e de corresponder aos seus interesses da nova classe dominante, os seus membros pretendiam «desenvolver a ciência proletária, reforçar as relações de verdadeira camaradagem no meio proletário, elaborar a filosofia proletária, orientar a arte em função das aspirações e da experiência do proletariado». Um programa político que o grupo pretendia aplicar a partir de clubes operários ou de empresas com uma forte presença bolchevique, recusando a atitude elitista dos futuristas e actividade dos intelectuais que escapavam a essa «política de classe». No entanto, a sua dimensão espontaneísta suscitaria rapidamente a desconfiança de Lenine, que impôs a subordinação do grupo ao Comissariado do Povo para a Instrução.

Decisiva seria, no entanto, uma resolução que o Comité Central aprovaria em Fevereiro de 1922. Intitulada «Sobre a luta com a ideologia pequeno-burguesa no domínio da arte», criou uma comissão encarregada de reunir todos os escritores e grupos favoráveis ao poder soviético, ao mesmo tempo que consagrava politicamente a linha que colocava a criação artística e literária na total dependência do Partido, retirando legitimidade à produção que escapasse a essa orientação. Trotski deteve neste processo, sublinhe-se, um papel capital, assinando no Pravda uma série de artigos onde propunha uma luta sem quartel no domínio da literatura e da arte: «a ditadura do proletariado», escreveria, «não é a organização económica e cultural de uma nova sociedade, é um regime militar revolucionário cuja finalidade é lutar pela instauração dessa sociedade». Por essa altura, duas concepções divergentes formalizavam ainda diferentes atitudes sobre a política literária do Partido: a protagonizada pelos intelectuais marxistas da velha geração, sensíveis ainda à especificidade dos valores estéticos, capazes de admitirem um caminho relativamente autónomo e de aceitarem a colaboração dos «compagnons de route» que não se encontravam estreitamente vinculados ao seu conteúdo de classe e aquela que reunia os jovens comunistas mais voluntaristas e inflexíveis, muitas das vezes pouco instruídos mas ávidos de poder, para os quais esses domínios tinham uma função puramente instrumental e eram a expressão elementar de uma opção ideológica.

Em Junho de 1925, e após meses de debates, o Comité Central iria então adoptar uma resolução, assinada por Bukarine («Sobre a política do Partido no domínio da literatura artística»). Nesta procurava-se proceder a uma análise marxista da sociedade pós-revolucionária e das suas contradições no domínio da cultura, adoptando-se uma posição ainda conciliadora. Apesar de se distinguirem os escritores de acordo com «critérios de classe» – os camponeses, os já referidos «compagnons de route» (considerados de extracção pequeno-burguesa) e os proletários –, preconizava-se uma atitude «plena de tacto e de atenção» para conduzir progressivamente a maioria «aos eixos da ideologia proletária». Reconhecia-se ainda, salomonicamente, que «se o proletariado possui já nas suas mãos os critérios infalíveis para julgar o conteúdo sociopolítico de não importa que obra literária, não detém ainda a resposta definitiva no que diz respeito a todas as questões concernentes à forma artística».

Será Fedaïev a definir em 1928, no I Congresso da Associação dos Escritores Proletários, a posição oficial do Partido sobre estes assuntos, enunciada no relatório «A via real da literatura proletária». Pela primeira vez de uma maneira explícita, aí se definia o realismo como a expressão artística própria do proletariado, sendo a ligação à «classe revolucionária» o factor que determinaria o desenvolvimento de todas as suas potencialidades. Os realistas do passado teriam, aliás, permanecido limitados no que dizia respeito à dimensão social do seu trabalho, uma vez que este não integravam ainda o sopro vital agora conferido pelo materialismo dialéctico, esse «método de consciência da vida que é o único método justo».

Os dados estavam lançados. Contudo, a direcção do Partido não estava satisfeita com a forma como o combate entre ambas as linhas acontecia às claras, «na rua», com a Associação dos Escritores Proletários a efectuar denúncias públicas de escritores e artistas considerados «formalistas» e estes a tentarem resistir-lhes nos organismos e nas publicações que ainda aceitavam a sua colaboração. Por isso, uma resolução do Comité Central de Abril de 1932 irá dissolver a Associação, proclamando a inclusão de todos os «apoiantes da plataforma do poder soviético» numa nova União dos Escritores Soviéticos inteiramente controlada pelo centro do Partido. Já sob a sua égide, o I Congresso dos Escritores Soviéticos, reunido em Moscovo no Verão de 1934, representará uma viragem definitiva em todo este processo. Principalmente pelo tom dado pela intervenção de abertura, feita em nome do Comité Central do Partido e do Conselho de Comissários do Povo, e da responsabilidade de um dirigente em ascensão, André Jdanov.

A alocução de Jdanov deu o mote para o processo de «normalização» que irá desencadear: ela fazia um balanço absolutamente triunfal da literatura soviética, num tom optimista que procurava opor ao pessimismo «decadente» da literatura burguesa do Ocidente, ao mesmo tempo que celebrava o regime e a figura de Estaline, num tom logo de seguida retomado pela maioria das intervenções. Durante as sessões, iria definir-se o lugar do agora chamado «escritor soviético», inteiramente disposto ao serviço do regime, lançando-se ainda as bases fundamentais do «realismo socialista», esse «método fundamental da literatura e da crítica literária soviéticas», que, tal como proclamavam os estatutos da União, «exige do artista uma representação verídica, historicamente concreta, da realidade no seu desenvolvimento revolucionário» inaugurado pela viragem de 1917. Passaria também a ser seu imperativo dever «a transformação e a educação ideológica dos trabalhadores no espírito do socialismo».

Daí em diante, o ataque à literatura e à arte modernistas iria subir de tom, levando à instauração de um regime de severíssima crítica, de silenciamento ou mesmo de terror (do Gulag ao pelotão de fuzilamento) sobre todos aqueles que ousassem divergir dos cânones jdanovistas. O escritor, enquanto «engenheiro de almas» – segundo a conhecida expressão atribuída a Estaline – não poderia fruir de uma liberdade de criação que pudesse debilitar a sua função de severo e inflexível educador do homo sovieticus. Para cumprir esse papel, deveria assumir uma atitude que associava a escrita à propaganda do regime e dos seus dirigentes. Mas deveria fazê-lo sempre de forma a ser compreendido «pelas massas», o que conseguiria através do exercício de uma grande legibilidade e da invocação dos valores essenciais da «pátria soviética». Nas artes plásticas e na arquitectura, a monumentalidade iria levar ao extremo essa estratégia funcional imposta pelo partido no domínio da criação, o que se tornaria particularmente patente na estatuária colossal e grotesca que preencheu por várias décadas milhares de praças, avenidas, estádios e jardins das cidades soviéticas.

Em 1953, quando da morte do «pai dos povos», a política para a arte e a literatura conseguira retirar da praça pública o estado de febril exaltação revolucionária e de arrebatamento criativo com o qual um grande número de artistas e de intelectuais havia recebido os acontecimentos de Outubro, aniquilando as esperanças de materialização da utopia que estes lhes tinham aberto. Ao invés, produzira um modelo dócil, repetitivo e bloqueado que, sem grandes alterações, foi mantido em todo o espaço do «socialismo real» até ao triénio-charneira de 1989-1991, podendo ainda hoje ser encontrado em estado-fóssil na Coreia do Norte ou, em menor escala, na China.

O próximo episódio ocupar-se-á destas e de outras sobrevivências da projecção planetária do mito de Outubro.

(continua)

Fonte: http://aterceiranoite.wordpress.com:80/2007/12/20/outubro-7/


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